09/03/2006

Vergonha.

São Paulo, 9 de Março de 2006

Caro senhor Stédile.

Ontem, depois de um dia cansativo de trabalho onde dirigí mais de 300 km e trabalhei mais de 12 horas cheguei em casa tarde da noite e depois de engolir alguma coisa que serviu de café da manhã, almoço e jantar, fui tentar relaxar um pouco diante da TV antes de dormir. Ví a notícia de que um Grupo pertencente ao MST havia invadido e destruído totalmente um centro de pesquisas da Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul.

Sabe seo Stédile, eu fiquei bem incomodado com a notícia. Uma das coisas que mais me chateou nas cenas que ví, como as estufas totalmente destruídas, o laboratório quebrado, foram as sementes de um estudo de melhoria genética, todas destruídas e misturadas. Sabe seo Stédile, eu fiquei com vergonha da pesquisadora que chorou na tv quando viu o resultado do protesto. Vinte kilos de sementes separadas em pequenos envelopes e catalogadas ao longo de vinte anos, seo Stédile. Pode uma coisa dessas? Será que a pesquisadora não tem vergonha de chorar ao ver vinte anos de trabalho, uma vida, ser destruido? Ela não sabe que a vida de um deve dar lugar ao "bem comum" que o senhor prega?

Essa tal de Aracruz tem mesmo que penar, né seo Stédile? Além de ter o prejuízo financeiro das instalações destruídas tem que perder mesmo esse trabalho de criação de tecnologia genética pra plantar árvores com maior índice de celulose e mais precoces, ou seja, que produzam mais rápido. Afinal, é uma vergonha tentar criar essa tecnologia. Tem mais é que comprar sementes de fora, que já tenham essa tecnologia, pagando os royalties. É uma vergonha, não podemos perder tempo com isso com tantas coisas mais importantes. Pode ser que o custo desses royalties faça algumas pessoas perder o emprego em curto prazo né? Mas é o preço, né seo Stédile?

Aliás seo Stédile, como o senhor mesmo diz, fazenda tem que produzir alimentos, não árvores, né? Afinal, árvores são usadas principalmente (mas não só) para produzir papel. E papel é usado pra produzir livros e cadernos. Eu tenho vergonha de morar num país que se preocupe com isso seo Stédile. Afinal, pra que precisamos de livros, pra que cadernos pra nossas crianças estudarem se todos pudermos ter um rocinha de feijão né? É uma vergonha, seo Stédile, uma vergonha.

E se todos pudermos ter uma rocinha de feijão, o que importa se essa tal de Aracruz deixar de existir. Todas as centenas (desculpe, milhares) de empregos que ela gera direta e indiretamente não precisarão mais existir, né? Ou seja, é sempre uns poucos sofrendo para o bem de muitos.

Sabe seo Stédile, eu venho de família humilde. Passei bastante fome quando era criança. É uma pena que meu pai não fosse de área rural e sim da cidade, senão eu já nasceria com uma profissão, seria um agricultor sem terra e estaria acima da lei. Mas não, é uma vergonha, ele era da cidade. Então eu tive que trabalhar muito seo Stédile, muito mesmo, pra ter uma profissão, sabe? Aliás, qual a sua profissão seo Stédile? Como o senhor ganha o sustento da sua família? Como o senhor faz pra ir pra Brasília e outros cantos do Brasil? Sabe, eu não entendo. Uma passagem São Paulo - Brasília - São Paulo, sem custos de alimentação e hospedagem não sai por menos de R$ 700,00. Sabe seo Stédile, eu tenho vergonha de não conseguir ir pra Brasília quando eu quero, não tenho esse dinheiro sobrando. Será que o senhor é patrocinado? Eu tenho vergonha de nunca ter tido a capacidade ser patrocinado em nada.

Mas voltando seo Stédile, depois de mostrar as cenas do "protesto" a televisão mostrou o senhor falando. Entre outras coisas o senhor falou que o inimigo não é mais o latifundiário tradicional.

Poxa, hoje eu tenho 35 anos de idade e trabalho na mesma empresa a mais de 20 anos seo Stédile. Essa empresa quase faliu a muitos anos atrás e, se o meu chefe não tivesse investido tudo o que tinha e o que não tinha, até sua própria dignidade e nome numa fazenda de café que o pai dele tinha e que não estava produzindo, ele não teria ganho o dinheiro necessário para empregar todas as pessoas que ele emprega na fazenda e salvar a pequena empresa onde trabalho. Ela é pequena mesmo, tem 30 funcionários. Mas hoje quando contratamos um novo funcionário, ele entra ganhando três vezes mais o que eu ganhava quando entrei, com a mesma idade que eu tinha. Sim seo Stédile, nós contratamos novos funcionários sempre que possível, é uma vergonha, uma vergonha. Tudo graças a um latifúndio. Não é pra se envergonhar seo Stédile?

O senhor disse que agora o inimigo é o capital externo das empresas transnacionais seo Stédile. Poxa, fiquei orgulhoso, o senhor mostrou que está atualizado em relação aos termos de mercado. Eu tenho vergonha, ainda não estou tão atualizado, ainda chamo essas empresas de multinacionais seo Stédile. Veja só se não é motivo de vergonha. Na minha cabeça seo Stédile, uma empresa transnacional é aquela que muda de país.

Sabe, acho que o senhor está certo. Deveríamos abolir todos os inimigos, todas estas empresas multinacionais seo Stédile. A culpa é toda delas. É uma vergonha. Deveriam todas ir embora daqui, todas as montadoras de veículos, todas as grandes indústrias. Opa, estou indo além? Me desculpe seo Stédile. E se o senhor falou só das empresas da área rural ou ligadas na mesma linha de produção? Todas as industrias alimentícias, de fertilizantes, as que compram e vendem do setor rural? Vergonha né? Elas deviam ir embora. Elas deviam fechar as portas e acabar com os empregos de 60% da população brasileira, né seo Stédile, afinal elas são os inimigos e todos nós teríamos uma rocinha de feijão.

Sabe seo Stédile, tenho que confessar, morrendo de vergonha. Eu me aliei ao inimigo seo Stédile. Antes eu prestava serviço principalmente ao que se chama hoje agronegócio. Ainda tenho alguns clientes assim seo Stédile. Também tenho outros clientes, a maioria multinacionais, de todos os setores. Sabe seo Stédile, eu devo ter vergonha mesmo, afinal eu tiro o meu sustento e dignidade trabalhando, como gostam de dizer as pessoas do campo, de sol a sol para o inimigo. Aliás, de sol a sol e além seo Stédile. Tudo isso pra um dia poder construir uma família digna seo Stédile e fazer o possível pra pagar meus impostos e ser alguém de bem. Tentar fazer um pouco pela sociedade como sempre tentei seo Stédile, seja empregando, seja auxiliando os necessitados, os amigos. É uma vergonha seo Stédile, eu nunca quis salvar o mundo inteiro. Pode uma coisa dessas? Achei que era tarefa grande demais pra mim. Tento só ajudar quem me cerca e acredito que isso pode gerar uma onda, seo Stédile. Uma vergonha, uma vergonha.

Mas eu vou mudar seo Stédile, o senhor pode apostar. Vou mudar e me inspirar no senhor. Vou ignorar a lei totalmente e botar pra quebrar. Não importa se eu estiver prejudicando um monte de gente sem perceber. Não importa se eu simplesmente ignorar que as coisas são interligadas, que se eu quebro aqui prejudicando uma empresa, eu prejudico seus funcionários, seu fornecedores, os fornecedores dos fornecedores, o país. Sabe seo Stédile, não vou me importar mais em ser íntegro e me preocupar com o próximo. Se eu achar que a causa é justa ou se eu tiver um ideologia que eu ache correta, foda-se a opinião do meu próximo, vou botar pra quebrar. Vou parar de ter vergonha, seo Stédile, o senhor vai ver. Daí que sabe eu ganho um patrocínio, vou pra Brasília quando bem entender e vou aparecer na tv, mesmo que seja pra falar bobagem.